sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Fogo*


Umarí Pereira

À tardinha, o Major retornava a sua cadeira de balanço, portando sua bengala, não que precisasse dela para se apoiar, era apenas um acessório, que lhe emprestava elegância e autoridade. E se alguém, por ventura, ousasse lhe desrespeitar, "levava com a bengala nas orelhas", como gostava de avisar. Como já esperava, um cafezinho fumegante e cheiroso, acabara de chegar pelas habilidosas e ágeis mãos de Ana Rita. O Major Ulhôa, recebe a xícara enquanto se demora, mais do que de costume, fitando o rosto da bela mulher, que finge não reparar, postando-se ao lado da cadeira, com o braço esquerdo sobre o encosto, pronta para balançar a cadeira do Major, assim que ele terminar de sorver o seu café. Depositando a xícara vazia na mesinha do lado esquerdo e se ajeitando na cadeira, o Major acende seu cigarro lançando baforadas em direção ao bueiro que também fuma. A fumaça do cigarro, soprada pelo Major Ulhôa, se confunde com a fumaça da chaminé do engenho num duelo, quase infantil, entre aquele homem sisudo e a edificação do engenho. Entre divertida e zombeteira, Ana Rita observa a discreta peleja do Major, como se naquele instante ele quisesse mostrar toda a sua virilidade e gênio folgazão.

O sol se pondo vai trazendo as sombras da noite e com elas os ruídos dos insetos e o murmúrio vindo das bandas das senzalas, que se preparam para dormir. Na casa grande, o silêncio só é quebrando por um ou outro ranger de móveis e o som cadenciado do engenho do grande relógio na sala de visitas.
Quem demorou a pegar no sono, apura os ouvidos pras bandas da casa grande, tentando adivinhar sussurros e murmúrios, quase gritos abafados... Alguns se benzem se esconjurando... Outros, em estado de pura excitação, chegam a visualizar  cenas eróticas, por traz daquelas grossas paredes.
Levado a se ausentar do Fogaréu, para resolver assuntos na Capital, o Major Ulhôa se demora na Cidade. Quando volta ao engenho, encontra Ana Rita ressabiada, desconfiada, ofendida. Calada, sem a alegria costumeira, Ana Rita continuava sua rotina de afazeres e cumprindo o ritual do cafezinho e da cadeira de balanço, todas as tardes. De vez em quando, passava um trabalhador, cumprimentando o Major, que respondia com leve aceno de cabeça. A cena se repetiu pela tarde inteira, parecendo que todos os moradores do Fogaréu, queriam olhar  a cara do Major Ulhôa, que imediatamente mandou chamar o chefe dos trabalhadores, para esclarecer a estranha movimentação. Ana Rita sumiu para dentro do casarão. Foi aí que Ulhôa ficou sabendo que Ana Rita tinha emprenhado.
- Quem foi o "filho de uma égua", que teve a audácia de bulir com a moça? Perguntou o Major, enraivecido, aos gritos.
- Ninguém sabe Major! E ela não conta pra ninguém... Não teve geito!
- Chame essa menina aqui! Berrou o Major Ulhôa. Você pode ir se embora, pro seu trabalho!
Nota: Originalmente, este texto foi criado como argumento do filme: Cana Fogo e Bagaço